domingo, 7 de junho de 2009

Noite de gala





Soltaram mais uma baforada e o cheiro dos cigarros invadiu o ar mais uma vez. Em algum lugar, alguém arrota e dá uma gargalhada histérica. Todos bebem e fumam sem parar, alguns ainda de terno, largados às cadeiras ao redor da mesa. É mais uma terça-feira. Fumamos e bebemos no meio da semana. Grande coisa.
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Uns riem e fazem estardalhaço de suas piadas banais. Outros reclamam da vida e maldizem suas famílias. Terça-feira. Pais de família trabalham amanhã. Hoje à noite, nós vagabundeamos, entre quedas, xingamentos e risos. E cambaleamos até o armário de bebidas para não deixar a alegria escapar. Enchemos copos, entornamos a bebida boca adentro e em seguida as garrafas vazias são arremessadas às paredes gastas. O teto já parece cansado de nós. Está cada vez mais fraco, prestes a ceder. Ninguém se importa. Os cacos de vidro espalhados pelo chão não incomodam.
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A comida acabou. Agora só nos resta o cheiro do tabaco e o gosto amargo do Dreher. Todos continuamos rindo. Contamos as mesmas piadas da semana passada. Todos mostramos os dentes estragados e as gengivas enegrecidas, em sorrisos sinceros, em alegrias falsas. O humor gira em torno de insinuar que o próximo é homossexual, ou talvez corno. Grande coisa.
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Talvez sejamos covardes. Talvez sejamos filósofos. Talvez filósofos covardes. Sim. Todos admitem a condição. Alguns até gostam dela. Alguém vira mais um copo, de olhos fechados, e pronuncia, para todos ouvirmos, a máxima da noite. Uma frase curta que encerra um discurso ao qual ninguém se deu ao trabalho de dar ouvidos. Não nos damos a trabalho algum, afinal. Levanta-se com alguma dificuldade e declara a grande conclusão com a voz enrolada: "A verdade está no álcool!". Ao que é muito aplaudido por todos os presentes. Já estamos todos bêbados. Temos a verdade, e isso nos basta. É o suficiente. É o que nos resta. Festejar a bebedeira, fazer piadas sobre absolutamente porra nenhuma, cantar e vomitar madrugada adentro.
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Em algum lugar lá fora, nossas esposas nos traem, nossos filhos descobrem o sexo e se esbaldam com entorpecentes.
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Pouco nos importa.
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Ainda temos meio estoque de bebidas e muitos cigarros a fumar.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Cotidiano de um casal feliz







Toca o despertador.

Ela acorda.

Ele acorda.

Ela se levanta e abre as cortinas para a luz entrar. Tira a camisola e toma um banho morno no banheiro de azulejos azuis, depois se veste, se debruça em frente ao espelho e começa a pôr maquiagem. Rímel, sombra, batom. Um batom rosa, tímido. E sai para fazer o café.
Ele continua deitado sob os lençóis, resmungando mentalmente. Depois se levanta, tira o pijama e toma um banho frio no banheiro de azulejos brancos. Faz a barba e começa a se arrumar. Abotoa a camisa, põe a gravata, as calças, jogando por cima o paletó. E sai para tomar o café.

O cheiro da comida irradia pela cozinha. Frutas, pães, torradas, suco. Lá está ela terminando de mexer os ovos, de avental em frente ao fogão. Do batente da porta, ele observa tudo com indiferença, ajeita a gravata com uma mão e segura a maleta na outra. Anda até a mesa, senta-se e começa apassar manteiga nas torradas e a comê-las, tomando um gole do suco esporadicamente. Sem dizer uma palavra.

Ela coloca os ovos na mesa, lhe dá um beijo de leve na face, diz bom dia e senta-se para observá-lo comer, deixando escapar um sorriso melancólico. Ele continua a olhar a comida, sem dar atenção a mais nada. Ao terminar, se levanta, ela se despede. E ele sai para o trabalho em silêncio.

Ela o vê sair, vê o carro se afastar e o perde de vista ao dobrar a esquina. Volta para dentro da casa. É o que lhe resta. Tirar a mesa, lavar os pratos e os talheres. Depois, varrer a casa, lavar as roupas, tirar o pó das prateleiras, assistir à novela e fazer o jantar. À noite, o jantar, o amor frio e o choro abafado no travesseiro. O de sempre.

Para ela, a cozinha, a casa, o marido.

Para ele, a comida, o trabalho, o sexo.

O cotidiano de um casal feliz.