quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Reificação




Contempla o cair da noite, recluso a seu cubículo, ao qual ousa dar o nome de lar. Observa o lado de fora, incapaz de se dar conta de si mesmo. Perscruta atentamente o que o rodeia, reparando cada fútil detalhe, na melancólica e por vezes bizarra esperança de encontrar uma rota de fuga. Já quase esquecendo da própria existência, chegando ao ponto de desistir de si. Talvez porque não tenha mais vontade alguma de prestar atenção no seu ego já miserável e consumido pela rotina. Já se tornou um autômato, acostumado ao mesmo movimento cíclico que sempre executa. Um homem-engrenagem. Movido por outros exatamente iguais. E por eles influenciado. Manipulado. Exausto e sem coragem demais para tentar libertar-se.

Reduz-se a si, um homem acovardado e simplório, um miserável aprisionado aos escarcéus mundanos, esgueirando-se diariamente por entre os prédios cinzentos que lhe servem de prisão, que o entregam à fria realidade de um mundo repulsivo. Esconde-se em recônditos criados por ele mesmo, numa tentativa fracassada de se aliviar da realidade perturbadora que se encarrega de consumi-lo, moldando em sofrimento sua face já marcada pela monotonia. E o faz trazer à lembrança dos que observam suas feições gastas a impressão de horror, deixando claro o vazio terrífico que passou a deter ao longo de tantos anos imundos vagando pelo nada sem possuir sequer algum esboço de rumo.

E quando finalmente olha para si, e percebe que ainda existe, não se reconhece no que vê. Porque dele só resta um espectro retaliado e insignificante, perdido no mundo urbano e inexpressivo que nada mais significa. E assim permanece, condenado a esse pequeno universo de reificação absoluta. À mercê dos dias. Do tempo.

sábado, 10 de janeiro de 2009

Solidão



A luz inebriante de mais uma pálida manhã penetrava a janela e dava as faces de outro um dia nublado. Despertou-me aos poucos, em tom sorrateiro.

O ambiente soturno do quarto em que dormira até então se aproveitava do fino feixe de luz para sustentar sua aparência melancólica. Como num gesto simbólico e irônico para me fazer acreditar que, como aquele fio frágil de luminosidade que trespassava o quarto melancólico, eu ainda deveria ter alguma esperança de que algo bom pudesse me acontecer. Deixei-me ser incomodado por algum tempo. Sabia que não havia como impedir o quarto de ser iluminado aos poucos. Continuei deitado, sentindo os lençóis ásperos, sujos de grãos de areia ao meu redor, entrelaçando-se ao meu corpo desordenadamente, deixando a sensação de desconforto me consumir até que eu resolvesse levantar. O cheiro forte de poeira me agredia, fazendo meu tormento mais desagradável ainda. Eu acordara e permanecia em estado semi-consciente, maldizendo em sussurros todo aquele lugar por não me permitir mais alguns minutos de sono sequer. Ao menos o silêncio parecia ser preservado. Não ouvia-se barulho nenhum além do meu respirar e rolar tenso na cama.

Finalmente resolvi sentar-me entre alguns dos numerosos calombos que a habitavam. Minhas pálpebras ainda pesavam, dificultando minha visão e desencorajando-me de seguir adiante.

Foi difícil levantar. O gosto amargo de uma noite longa me incomodava. Tossi algumas vezes. Meus pulmões doíam, meus pés mal suportavam o peso do meu corpo e já me davam a sensação de cansaço. Minhas pernas imploravam que eu não as erguesse além daquele ponto, fadigadas e descaídas sem que eu ao menos lembrasse por quê. Meu corpo estava esgotado. Física e psicologicamente. Não havia o que eu queresse além de sair de lá num salto, deixar aquele lugar que me aturdia tanto. Fui aos poucos me içando da cama, vagarosamente, sentindo as dores que acompanhavam cada parte do meu corpo aumentarem pouco a pouco. Cada vez mais cálidas, cada vez mais intensas.

Fiquei de pé. Meu esforço finalmente me erguera. Cheguei a sentir certo orgulho por ter tido sucesso quanto àquilo. Agora meus passos deveriam guiar-me para fora de lá. Meus pés continuavam a protestar, querendo não continuar no desenrolar daquela árdua tarefa. Com razão. Mas eu precisava sair, ir a algum lugar que não fosse tão desagradável. Passei pela porta do quarto, empenada, já prestes a cair, e me deparei com um corredor. Percorri cambaleante alguns metros dentro do que parecia ser uma casa desfeita aos pedaços. Finalmente saí, já ofegante, sentindo o suor que me descia pelo corpo e trazia o desconforto que a umidade me fazia sentir.

Parei à soleira da porta. Observei o que havia ao redor, sem ter idéia de onde estava, ou por que estava ali. Deparei-me com uma rua destruída. As casas que a ocupavam estavam em ruínas, algumas haviam se reduzido a paredes que já não sustentavam nada, enegrecidas e parcialmente tombadas por algo que aparentava ter sido um incêndio acompanhado de um terremoto ou algo tão destrutivo quanto. Andei por algumas horas, já ignorando a dor que tanto me incomodava. Tudo parecia simplesmente abandonado. Entregue ao caos.

Vaguei por dias ao longo de ruas e frígidas insalubres, sem achar nada que me pudesse explicar o que havia acontecido. Tudo havia se tornado simplesmente deserto. Não havia uma única alma ainda viva, tampouco morta, que habitasse sequer algum daqueles tantos quilômetros percorridos.

Mais ninguém. Mais nada. Só eu. Literalmente só no mundo. Preso e solitário no abismo repugnante da degradação humana.



(M.L.)

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Sonho


Eu andava num gramado macio. Era mais verde e vivo do que os comuns. Talvez fosse porque você estava lá para fazer tudo melhor, mais belo. O dia era suavemente ensolarado e uma brisa delicada soprava em nossos rostos. Os passos silenciosos caminhavam em harmonia rumo ao nada, simplesmente atravessando o espaço e cortando o vento para alcançar qualquer lugar. Eu já não sabia quem era. Eu. Assim, sem nome e sem lembranças, sem passado.

Meus olhos procuravam os seus, em busca de segurança e respostas. Mas os seus fugiam, recusando-se a ceder-me sua atenção. Eu achava não ser capaz de pensar por mim mesmo, tampouco de andar por mim mesmo. Temia que voce soltasse a minha mão e eu caísse. Eu não sabia de você. Eu te amava. Sem ao menos saber por que. Mas você não me soltou. Continuou a me segurar, a caminhar comigo de cabeça baixa, com o rosto escondido entre os cabelos escuros, que refletiam a luz já fraca do sol já poente. Eu não sabia o que fazer. Eu não sabia nada. Deixei-me levar por teus passos.

Tentei me aproximar mais. Você se afastou bruscamente. Soltou-me e foi para longe de mim. Mas não caí. Deixou-me ali, parado, te fitando de costas, sem me dar conta do caos que tomava meu interior e exterior. Eu simplesmente jazia ali inerte, sob o céu já enegrecido num tom acinzentado, sem vida. A escuridão começava a cercar tudo, prenunciava o desastre sem que eu percebesse. Você se virou para mim, ainda sem revelar o rosto. E foi se desmanchando, se transformando em cinzas que aquela brisa levava ao alto e desaparecia, transfigurada em pó. Corri tomado pelo desespero para te alcançar e fazer algo que nem sabia o que. Mas fazia-o em vão. Não havia mais você.






(M.L)

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Nada de novo no Front



Tocou o alarme do despertador. Levantou-se da cama lentamente e, desanimado, foi andando até a cozinha, ainda parcialmente atordoado pelo sono. O aroma exalado pelo café tomava o lugar por completo, invadindo suas narinas e despertando-lhe a diária preguiça que o cotidiano impunha. A empregada fora arrumar o quarto. Serviu-se do café, passou manteiga numas torradas e sentiu o mesmo gosto de sempre, já sem achar nele mais graça alguma. Os sagrados e monótonos rituais de toda manhã, que o tempo há tanto desgastara. Que a solidão há tanto desgastara.

Catou o jornal do dia. Abriu-o e pôs-se a lê-lo. Tiroteios. Alguns mortos, outros tantos feridos. Assassinatos em todas as páginas, corrupção, mais umas mortes e a tabela do campeonato. As mesmas notícias, os mesmos acontecimentos em todo lugar ao seu redor. Dobrou o jornal e deixou-o de lado. Maldito jornal.

Agora está só na cozinha, com uma xícara de café esfriando à sua frente e algumas torradas mordiscadas. O café da manhã pela metade. Ele fita o nada. O olhar perdido. E assim fica, vazio, quando lembra que é hora de enfrentar mais uma vez o caos urbano que o cerca, sair rumo a mais um dia monótono, sabendo que o próximo será igual. Abandonado por si mesmo no próprio cotidiano.

Assim será. Sempre.

E ponto final.




(M.L.)