sábado, 21 de março de 2009

Uma xícara de chá


Está largado à grande poltrona da sala. Os pés descalços tocam o chão frio de mármore branco. É domingo cedo de manhã. O dia ainda amanhece, nublado e cinzento. As nuvens escuras cobrem o céu até a linha que delimita o horizonte. A camisa social arregaçada até os cotovelos e a calça estão amassadas, ligeiramente sujas. Ele fita o lado de fora pela grande janela que substitui a parede do apartamento. As pílulas jazem solitárias sobre a mesa de centro entalhada em madeira nobre da lauta sala. Deveria te-las tomado noite passada. Não quis. Não dormiu, tampouco sentiu-se vivo em momento algum da madrugada em claro. Permanece entorpecido. A lareira artificial dança a alguns metros dele. Ressalta o frio que passa naquele lugar. Sente-se gélido por dentro. Rígido. E oco.

A esposa acordara há pouco. Entra na sala com a xícara de chá de hortelã na mão direita e o jornal na esquerda olhando de esguelha aquele homem desconhecido de olhos vazios. É indiferente à sua presença. Senta-se no sofá, toma um antidepressivo e põe-se a ler. Ele continua a pensar silenciosa e profundamente, sem pílulas, abstraído em sua palidez mórbida. Transmite todo o ar da decadência angustiante que toma o seu corpo precocemente envelhecido. Sua mente perdura nos pensamentos amargos e mansos. Imerso na possibilidade íntima e inebriante de não mais existir. O derradeiro alívio.

Ela continua a passar os olhos pelas mesmas linhas monótonas e homogêneas da mídia, impassível diante das notícias que tanto destacam pobres e miseráveis de todo tipo vivendo `as margens urbanas. Suspira, entediada. Ele prende a respiração. E declara em voz baixa, quase sussurra seu destino:

- Vou acabar com isso tudo.

- Com o que? - pergunta sem olhar para ele - Quer um divórcio? - e suspira novamente, tomada pela indiferença - Já era hora.

- Não. Com toda essa vida escrota. - responde tirando os olhos do vazio e pousando-os sobre ela. Ela ergue a sobrancelha direita, abre um sorriso irônico no canto da boca e encara-o de modo arrogante.

- É mesmo? - indaga desdenhosa.

- Sim.

- Ao menos poupa-me o dinheiro do advogado. E como vai ser?

- Vou me jogar daqui.

São vinte e cinco andares até o asfalto da avenida.

- Que original.

Silêncio. Ela continua:

- Não vai começar a escrever sua despedida?

- Não vai haver despedida escrita. Só vou fazer de uma vez.

- Então trate de andar logo.

Silêncio.

- Entendi. Você não tem coragem. É um covarde.

- Sou. Por isso vou fazê-lo.

-E o que está esperando?

- Nada - e põe-se de pé.

Ele respira fundo, contempla seus últimos momentos. Ela continua sentada ali, fitando-o com escárnio, rindo-se de toda a cena por dentro. A ela tanto faz te-lo ali ou não.

Começa a andar tranquilamente. Toma impulso, não muito forte, apenas o suficiente para romper o vidro. Vai de encontro à janela e quebra-a em inúmeros cacos, que o acompanham na queda. Fecha os olhos. Sente-se livre e sereno no caminho desenfreado rumo ao chão. Por quatro eternos segundos ele voa. Oitenta metros de paz.

E encontra o chão. Bate.

Morre despedaçado na sarjeta.

O derradeiro alívio.

Ela leva a mão à boca.

Boceja.

E toma mais um gole do chá.