Ps. Se estiver interessado(a) em ler esse capítulo, sugiro que leia o prólogo primeiro.
Capítulo Primeiro
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O Sr. Andrei sempre marcou a memória de quem o conhecia como um homem agitado. Possuía estatura mediana e era corpulento, apesar de já ter alcançado a faixa de seus cinquenta anos, talvez um pouco mais. De sua cabeça não brotava sequer um fio de cabelo; ficara careca cedo, por volta dos trinta, talvez por reflexo da sua genialidade: um homem cuja inteligência parecia não ter limites. Raramente se viam pessoas mais sábias ou pálidas que ele.
Rumores de concorrência.
Foi a gota d'água. Não poderia nem pensar em concorrência. O mercado em que atuava sempre foi perigoso, e todas as transações executadas em sigilo absoluto. O silêncio era primordial. O fato da ilegalidade o exigia.
Campfel e Nicolai aproximaram-se daquele homem imundo e, sem quaisquer dificuldades, colocaram o pano embebido em éter sobre seu nariz e boca, segurando firme sua cabeça. Apresentou pouca resistência, até amolecer por completo. Asseguraram que não gritaria nem incomodaria a ninguém; com uma simples bola de meias na boca e algum pedaço de plástico unindo suas mãos. Já carregavam o mendigo devidamente anestesiado e amordaçado para o porta-malas do carro. Suas mãos eram protegidas da pele encardida do homem por suas luvas de couro, impedindo que corressem qualquer risco de contaminação. Mesmo assim notavam que sua epiderme era extremamente áspera, como se tivesse transmutado numa couraça de couro duro e inflexível para resistir ao mau tempo e às péssimas condições. Devia ser um homem valente, a julgar pelo fato de ainda permanecer vivo e persistir nisso depois de tanto tempo. Uma pena. O pobre jamais acordaria novamente.
Cumpriam a tarefa tomados por um desânimo evidente. Não deveriam estar ali. Afinal, o que Andrei queria com mendigos? Era claro que raramente algo deles seria aproveitado. Mas foram mandados e era dever deles. Obviamente questionaram o chefe no dia anterior, quando lhes foi dada a tarefa, mas este se absteve de dar qualquer justificativa que elucidasse a situação. Manteve-se em silencio por longos minutos. O primeiro sinal do desespero. Seria assim e pronto. Não havia necessidade de justificar nada a ninguém. Tinham em mente que algo estava errado, e logo saberiam o quê.
Depositaram o pária no porta-malas, despreocupados em olhar em volta para verificar se ninguém os observava. A rua era escura e deserta, num local relativamente ermo. Estavam seguros. Deram a volta e abriram as portas da frente. Sentaram-se e bateram suas botas umas nas outras, observando a poeira a deixá-las em forma de uma fina nuvem de fumaça.
Entraram e fecharam as portas ao som da ignição. O carro arrancou, levando-os pelas ruas vazias a um dos hospitais-necrotérios particulares de Andrei.
Foram recebidos friamente, como de costume, no estacionamento do primeiro andar subterrâneo, onde todos os indivíduos inconscientes chegavam. O leito chegou e simplesmente abriram o compartimento traseiro e deixaram que os enfermeiros se encarregassem de deitar o homem e levá-lo para os andares inferiores, o quarto e o quinto subsolo, onde ficavam os consultórios em que todas as vítimas eram analisadas, para então serem levadas mais acima, às câmaras de extração, no terceiro e segundo subsolo. Os elevadores saíam do primeiro diretamente para o quarto e o quinto andar, sem conexões diretas com os outros dois. Todos que lá chegavam eram obrigados a passar pelos últimos andares antes de subir novamente para o segundo e o terceiro. Só então poderiam retornar ao estacionamento e a superfície.
Era a maneira que Andrei havia encontrado para assegurar que os agentes seriam obrigados a fazer o mesmo percurso que suas vítimas. Acompanhariam-nas durante o diagnóstico e a extração do que quer que tivessem de útil, até que os transplantes fossem concluídos. Só então receberiam uma espécie de certificado do médico responsável pelas cirurgias, contendo todos os dados; quantas peças haviam sido aproveitadas, quais, sua eficácia, o preço pago pelo receptor e outras informações a respeito do processo. Assim finalmente estariam livres para apresentar-se aos assistentes de Andrei e receber a comissão e novas tarefas. Então viriam os próximos raptos, as próximas vítimas e os lucros. Tratava-se de um processo cíclico e complexo. Entretanto, jamais poderiam abusar ou fazer tudo em excesso, com o pensamento somente na recompensa. A discrição era a ferramenta mais importante para que toda a indústria funcionasse. Sem isso, todo o sistema minuciosamente planejado e construído ao longo de vários anos desmoronaria em questão de horas.
Era fim de tarde. O Sol se punha e o sorriso estampado no rosto da jovem contrastava vertiginosamente com sua situação. Tinha poucos dias de vida. Uma semana, na melhor das hipóteses. A doença se alastrara rapidamente. Seus pais choravam ao seu lado, desconsolados, sem esperanças. Sua irmãzinha não entendia o que se passava, mas preferiu guardar o silêncio diante da tristeza dos pais. Era melhor que podia fazer seria não piorar a situação. Foi o que fez. Ainda não compreendera o conceito de morte. Esperava que a irmã voltasse em algumas semanas ou alguns meses, como numa viagem. Mas não haveria volta. É algo que sua jovem mente de quatro anos de idade ainda não alcançara.
E isso incluía as suas.
(M.L)