quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Valdemar



Valdemar perdeu a cabeça numa aposta. Achou que ia ganhar e acabou perdendo.

Ficou desesperado. Foi chorar no ombro da mãe e ela bateu-lhe a porta na cara. A esposa o abandonou e levou-lhe embora os filhos. Recorreu a todos que conhecia, e todos lhe viraram as costas. Estava abandonado, sem dinheiro, sem lar, sem cabeça. Vivia em botecos, largado ao balcão, sóbrio, implorando por uma bebida e recolhido à miséria de ter de esperar a data da degola consciente, sem poder se embriagar.

Compadecido, fui até ele. O homem transbordava sofreguidão e desalento. Não sabia quem Eu era, mandou-me embora e tentou expulsar-me de perto. Expliquei de quem se tratava. Ele riu.

- Quer dizer que Você é o...

Com um gesto de mão, fiz com que ele se calasse e se acalmasse.

- Sim, sou Eu. Veja só, tenho uma proposta a fazer-lhe.

- Tem? Qual?

- Tenho. Andei te observando durante essas últimas semanas.

- E?

- E senti que você não merece terminar na sala de um colecionador de cabeças. Você é boa gente, entende o que digo?

- Entendo. O que o Você propõe?

Valdemar deixara o tom ríspido e assumira o respeitoso. Os olhos já ganhavam de volta o brilho de esperança. Pedi alguns drinques e começamos a beber, já bastante animados.

- Proponho a recuperação da sua cabeça e uma vida nova. Uma mulher gostosa, filhos saudáveis, um carro novo todo ano, uma casa cara e muito dinheiro. O que me diz?

- Você disse dinheiro?

- Muito dinheiro.

- O que tenho de fazer em troca?

- Depois que tiver isso tudo, só o que Eu mandar, quando mandar.

- Não entendo direito o que quer dizer, mas se vai me salvar, negócio fechado.

Estendeu a mão, agradecido, trocamos um aperto firme e logo me perguntou como faria tudo aquilo por ele.

- Deixa comigo, meu caro. Eu resolvo tudo sem você se preocupar com nada.

*****

Em três anos, Valdemar se tornou um homem realizado, dos que têm sucesso em tudo e todos invejam.

Quando nos encontramos novamente, estava totalmente mudado. Agora parecia mais jovem, tinha a barba feita, andava bem vestido e fumava bons charutos.

Saudei-lhe com ânimo. No entanto, ele parecia não se lembrar graças a quem ainda era dono da própria cabeça e tinha uma vida confortável.

- Olá, Valdemar. Já faz três anos.

Ele parecia embaraçado.

- Vejo que continua vivo e anda muito bem - continuei

- É verdade... - disse de modo inseguro e, após alguns segundos em silêncio, perguntou novamente no antigo tom ríspido - mas afinal, o que você quer?

Ele parecia tomado de medo ao me ver.

- Ora, mas o que foi que aconteceu? Você não se lembra? Aonde foi toda a sua avidez e animação ao falar comigo? Eu só quero que cumpra a sua parte do trato. Lembre que não se pode fugir dele.

- E o que quer que eu faça?

- Ah, nada de mais, meu caro. Nada de mais. Escute, essa noite vou aparecer na sua casa, sim? Vou lhe explicar tudo. Eu cumpri a minha parte, o colecionador está morto e todo o resto aconteceu. Você terá a situação confortável de hoje pelo resto da vida. Da mesma forma, terá de me obedecer por um período de tempo ligeiramente mais longo, sim?

Ele continuava não parecendo muito confortável.

- Relaxe - eu o consolei com um tapinha no ombro - e tudo há de acontecer mais facilmente.

Sem mais palavras, tratei de seguir meu caminho.

Na mesma noite, apareci sentado na poltrona dele, na sala da casa. A mulher fazia o jantar e os filhos brincavam. Uma bela casa, sem dúvida. Bem mobiliada, com decoração suave e adornos discretos em todo lugar. Peguei um cubano e comecei a fumá-lo, até que o Valdemar saiu do banho e desceu as escadas.

Assim que me viu, empalidaceu, mas não estranhou que Eu estivesse ali. Ficou preocupado com a família.

- Não se preocupe, meu caro. Eles não podem me ver.

- O que quer, afinal? Diga logo e eu faço de uma vez.

Balancei a cabeça em desaprovação e adverti:

- Não é tão fácil assim. Você me prestará seus serviços por muito tempo.

- Que serviços? - falou com voz impaciente

- Sabe, Valdemar - estalei os dedos e continuei de pernas cruzadas na poltrona. Ele observava ao redor, sua família paralizada como estátua e todo o resto imóvel. Dei uma longa pausa, tentando achar as palavras certas, e prossegui -, Eu me apaixonei por você desde a primeira vez em que o vi.

Ele voltou o olhar para mim. Tinha assumido uma fisonomia de horror. Valdemar estava atônito. Não conseguia dizer nada.

- É verdade. E é assim que vai funcionar. Infelizmente, você não tem saída: todas as noites, quando ouvir o estalar dos meus dedos, já vai saber que está para começar a nossa noite. Não se preocupe. O que faremos será por amor.

Seu rosto expressava uma mistura de raiva, surpresa e horror.

Continuei:

- O tempo vai parar, e eu quero que você desça ao porão...

- Mas não existe porão aqui - interrompeu desesperado, numa tentativa de desvencilhar-se do assunto.

- Agora existe. Quero que desça ao porão, coloque a roupa que achar no armário e me espere na cama. Eu chegarei logo depois, e desfrutaremos juntos dos prazeres carnais.

- Seu maldito! Seu miserável! - ele berrou com os olhos rasos d'água, tomado de fúria.

Tentou me acertar com um soco no rosto. Acertou a poltrona. Eu não estava mais lá.

- Escute, Valdemar - minha voz ecoava pela sala -, é melhor honrar a sua parte do trato. Nem pense em se negar a fazê-lo. Será pior ainda.

- E o que pode ser pior? Onde você está? - ele bradava iracundo.

- Coisas ruins podem acontecer à sua família.

- Quem se importa?

- Bem, coisas piores poder acontecer ao seu dinheiro.

Ele se limitou a silenciar e baixar a cabeça.

- Amanhã. Amanhã começaremos.

Ouviu-se novamente o estalido e tudo voltou ao normal. E ficou ali, parado, sem reação.

Na noite seguinte, o mesmo barulho. Valdemar desceu ao porão, hesitante, se fantasiou de anjo e pôs-se a me esperar.

Lá estava ele na cama quando cheguei. Possuí-o com amor, com vigor e, por fim, com violência, enquanto ele choramingava palavras ininteligíveis. Foi maravilhoso. Satisfiz-me, sussurrei ao seu ouvido que o amava e que com o tempo aprenderia a me amar também. Ao som dos dedos, desapareci e o tempo voltou a correr. Ele parecia traumatizado.

Todas as noites, encho-me de tesão e, de longe, ao estalar dos dedos, já posso ouvir os gritos de horror do Valdemar apavorado.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Domingo à tarde

Ligo o computador. É a minha última esperança de salvação de um dia monótono. Talvez a internet me reserve algo melhor. Abro o msn em aparecer offline. Ninguém com quem eu queira falar está lá. Mais um dia deprimente. Estou enclausurado aqui dentro, sem energia para dar uma volta na rua, olhar as pessoas e o mundo, ou talvez simplesmente sem saco de ir lá e me deprimir mais ainda. Hoje as horas parecem não passar. O mundo anda em câmera lenta. Sento meu rabo preguiçoso aqui e passo a tarde tentando lembrar o que tanto fazia para me divertir quando era mais jovem, mas não consigo lembrar de nada. Minha cabeça já começa a falhar. Resta-me o ócio. Passo algum tempo arrancando pêlos das sobrancelhas e colocando-os sobre a mesa à minha frente. Suspiro e resolvo colocar uma música para melhorar um pouco a situação, mas pouco do que eu gosto realmente me agrada. Não quero rock, não quero clássico, não quero nada. Beirut parece adequado. A música é leve e não me incomoda. É o suficiente.

O barulho anuncia que eu tenho um email novo. Abro-o avidamente. Talvez seja minha salvação. A página carrega e me mostra mais uma corrente. Fico irritado. O que quer que seja, não me interessa.

E no canto da página, a propaganda. Um garanhão beija uma gostosa intensamente. "Encontre seu par perfeito aqui" "O amor da sua vida te espera" "Clique já!".

Grande merda. Eu mesmo já devo ter tido algumas dúzias de amores da minha vida. E alguns não chegaram a durar um fim de semana. Resolvo clicar. Outro site de relacionamentos. São todos quarentões e quarentonas caídos e ainda querendo transar, cada um tentando provar a si mesmo que ainda é capaz foder apesar da merda de vida que têm, apesar do divórcio ou de nunca ter se casado. Vejo alguns perfis e consigo esboçar um sorriso. Alguns até me fazem rir com suas táticas tragicômicas de sedução. Velhos bancando garotões com pranchas de surfe, bermudas e sorrisos forçados que parecem de plástico. Velhas bancando modelos, tomando sol em biquinis quase inexistentes, com óculos escuros e sorrisos forçados que parecem de plástico. Nunca vi sorrisos tão grotescos.

Começo a rir mais uma vez.

Já sei como passar o resto dessa maldita tarde.

domingo, 7 de junho de 2009

Noite de gala





Soltaram mais uma baforada e o cheiro dos cigarros invadiu o ar mais uma vez. Em algum lugar, alguém arrota e dá uma gargalhada histérica. Todos bebem e fumam sem parar, alguns ainda de terno, largados às cadeiras ao redor da mesa. É mais uma terça-feira. Fumamos e bebemos no meio da semana. Grande coisa.
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Uns riem e fazem estardalhaço de suas piadas banais. Outros reclamam da vida e maldizem suas famílias. Terça-feira. Pais de família trabalham amanhã. Hoje à noite, nós vagabundeamos, entre quedas, xingamentos e risos. E cambaleamos até o armário de bebidas para não deixar a alegria escapar. Enchemos copos, entornamos a bebida boca adentro e em seguida as garrafas vazias são arremessadas às paredes gastas. O teto já parece cansado de nós. Está cada vez mais fraco, prestes a ceder. Ninguém se importa. Os cacos de vidro espalhados pelo chão não incomodam.
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A comida acabou. Agora só nos resta o cheiro do tabaco e o gosto amargo do Dreher. Todos continuamos rindo. Contamos as mesmas piadas da semana passada. Todos mostramos os dentes estragados e as gengivas enegrecidas, em sorrisos sinceros, em alegrias falsas. O humor gira em torno de insinuar que o próximo é homossexual, ou talvez corno. Grande coisa.
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Talvez sejamos covardes. Talvez sejamos filósofos. Talvez filósofos covardes. Sim. Todos admitem a condição. Alguns até gostam dela. Alguém vira mais um copo, de olhos fechados, e pronuncia, para todos ouvirmos, a máxima da noite. Uma frase curta que encerra um discurso ao qual ninguém se deu ao trabalho de dar ouvidos. Não nos damos a trabalho algum, afinal. Levanta-se com alguma dificuldade e declara a grande conclusão com a voz enrolada: "A verdade está no álcool!". Ao que é muito aplaudido por todos os presentes. Já estamos todos bêbados. Temos a verdade, e isso nos basta. É o suficiente. É o que nos resta. Festejar a bebedeira, fazer piadas sobre absolutamente porra nenhuma, cantar e vomitar madrugada adentro.
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Em algum lugar lá fora, nossas esposas nos traem, nossos filhos descobrem o sexo e se esbaldam com entorpecentes.
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Pouco nos importa.
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Ainda temos meio estoque de bebidas e muitos cigarros a fumar.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Cotidiano de um casal feliz







Toca o despertador.

Ela acorda.

Ele acorda.

Ela se levanta e abre as cortinas para a luz entrar. Tira a camisola e toma um banho morno no banheiro de azulejos azuis, depois se veste, se debruça em frente ao espelho e começa a pôr maquiagem. Rímel, sombra, batom. Um batom rosa, tímido. E sai para fazer o café.
Ele continua deitado sob os lençóis, resmungando mentalmente. Depois se levanta, tira o pijama e toma um banho frio no banheiro de azulejos brancos. Faz a barba e começa a se arrumar. Abotoa a camisa, põe a gravata, as calças, jogando por cima o paletó. E sai para tomar o café.

O cheiro da comida irradia pela cozinha. Frutas, pães, torradas, suco. Lá está ela terminando de mexer os ovos, de avental em frente ao fogão. Do batente da porta, ele observa tudo com indiferença, ajeita a gravata com uma mão e segura a maleta na outra. Anda até a mesa, senta-se e começa apassar manteiga nas torradas e a comê-las, tomando um gole do suco esporadicamente. Sem dizer uma palavra.

Ela coloca os ovos na mesa, lhe dá um beijo de leve na face, diz bom dia e senta-se para observá-lo comer, deixando escapar um sorriso melancólico. Ele continua a olhar a comida, sem dar atenção a mais nada. Ao terminar, se levanta, ela se despede. E ele sai para o trabalho em silêncio.

Ela o vê sair, vê o carro se afastar e o perde de vista ao dobrar a esquina. Volta para dentro da casa. É o que lhe resta. Tirar a mesa, lavar os pratos e os talheres. Depois, varrer a casa, lavar as roupas, tirar o pó das prateleiras, assistir à novela e fazer o jantar. À noite, o jantar, o amor frio e o choro abafado no travesseiro. O de sempre.

Para ela, a cozinha, a casa, o marido.

Para ele, a comida, o trabalho, o sexo.

O cotidiano de um casal feliz.

sábado, 23 de maio de 2009

Ampulheta











Um cadáver se decompõe no canto do aposento, nu, já com larvas em todos os orifícios. Os olhos e a boca jazem abertos, rodeados pelas carnes escuras e putrefatas. Ele fita o teto com o olhar morto.

Do outro lado do cômodo, a menina brinca com a ampulheta, vira-a de um lado para o outro, vendo a areia passar pelo estreito. Coloca-a deitada, fazendo cessar o movimento, e observa aquele homem ali, a alguns metros de distância, tão quieto e silencioso. Então resolve virar o lado mais cheio para cima. A areia fina começa a descer novamente, e ela põe os olhos no corpo mais uma vez. A carne começa a clarear, as larvas somem e o ar aos poucos volta aos pulmões ofegantes, até que ele vira a cabeça, olha a criança nos olhos e agradece com voz fraca. Depois, fecha os olhos e dorme. A respiração se torna cada vez mais profunda. As rugas se esmaecem, até desaparecerem e sobrar o rosto e o corpo de uma criança, e, por fim, o de um bebê.

Até que os últimos grãos começam a cair.

A menina inverte o fluxo de areia e observa a queda dos fragmentos com o olhar indiferente. depois, volta a fitar o que se tornou um bebê no chão. E ele começa a se transformar. Ainda dormindo, vira uma criança e um jovem. As rugas começam a reaparecer, cada vez mais marcantes na face do homem já idoso. Ele acorda, vira a cabeça e olha a criança nos olhos uma segunda vez, agora pedindo piedade, por favor. Os olhos sem brilho passam a fitar a ampulheta e a queda incessante dos grãos. Com a voz rouca e distante, ele implora, deixando escapar uma lágrima pelos olhos fundos e escuros, umedecendo a tez ressecada da sua face. E finalmente expira, uma última vez. Falece novamente. A areia continua caindo. O corpo escurece e a carne recomeça a apodrecer, até que se torna uma pilha de ossos abandonados. Depois, apenas pó. E é levado janela afora pelo vento frio que passa.

A menina observa tudo com um sorriso doce no rosto.

E vira a ampulheta mais uma vez.

sábado, 25 de abril de 2009

Descartável






Mais um casal adolescente vomita eu te amo para todos os lados.

Ela usa maquiagem de vagabunda, um piercing no nariz e um penteado chamativo. A filha acéfala da burguesia. A princesa do capital. As roupas que a adornam são trapos caros e malfeitos por alguma grife.

Ele usa a bermuda, um boné desnecessário, o cabelo encharcado de gel e um par de tênis maior que seus pés. O rapaz consegue ser mais burro que ela. Um brinco brilha numa de suas orelhas e masca o mesmo chiclete há algumas horas.

São pequenos rebeldes consumistas, sem ideologia, sem causa. A figura tragicômica da modernidade. O retrato do futuro.

Ali vê-se a elite, sentada no banco de um shopping center, acorrentada ao monumento ao capitalismo.

Tudo tão previsível.

Os olhos permanecem baixos. Mais uma crise. É óbvio. São sempre iguais. O fim de um relacionamento fútil. Ela pede desculpas, beija seu pescoço, e depois sua boca. Ele continua inerte, como se o que quer que tivesse provocado aquilo fosse para ele o fim de sua vida e de sua esperança. Conservava-se absorto em seus pensamentos superficiais. Deve perdoá-la ou não? Tanto faz. Assim que acabar com ela correrá para os braços de outra igual. Deixa-se levar pelos devaneios limitados que enchem sua cabeça. Permanece sem reação por alguns minutos, mergulhado no seu próprio vazio. Despertou ao ouvir as palavras doces da boca venenosa de sua pequena vadia.

- Eu te amo - ela cuspiu-lhe no rosto.

E ele acreditou.

sábado, 21 de março de 2009

Uma xícara de chá


Está largado à grande poltrona da sala. Os pés descalços tocam o chão frio de mármore branco. É domingo cedo de manhã. O dia ainda amanhece, nublado e cinzento. As nuvens escuras cobrem o céu até a linha que delimita o horizonte. A camisa social arregaçada até os cotovelos e a calça estão amassadas, ligeiramente sujas. Ele fita o lado de fora pela grande janela que substitui a parede do apartamento. As pílulas jazem solitárias sobre a mesa de centro entalhada em madeira nobre da lauta sala. Deveria te-las tomado noite passada. Não quis. Não dormiu, tampouco sentiu-se vivo em momento algum da madrugada em claro. Permanece entorpecido. A lareira artificial dança a alguns metros dele. Ressalta o frio que passa naquele lugar. Sente-se gélido por dentro. Rígido. E oco.

A esposa acordara há pouco. Entra na sala com a xícara de chá de hortelã na mão direita e o jornal na esquerda olhando de esguelha aquele homem desconhecido de olhos vazios. É indiferente à sua presença. Senta-se no sofá, toma um antidepressivo e põe-se a ler. Ele continua a pensar silenciosa e profundamente, sem pílulas, abstraído em sua palidez mórbida. Transmite todo o ar da decadência angustiante que toma o seu corpo precocemente envelhecido. Sua mente perdura nos pensamentos amargos e mansos. Imerso na possibilidade íntima e inebriante de não mais existir. O derradeiro alívio.

Ela continua a passar os olhos pelas mesmas linhas monótonas e homogêneas da mídia, impassível diante das notícias que tanto destacam pobres e miseráveis de todo tipo vivendo `as margens urbanas. Suspira, entediada. Ele prende a respiração. E declara em voz baixa, quase sussurra seu destino:

- Vou acabar com isso tudo.

- Com o que? - pergunta sem olhar para ele - Quer um divórcio? - e suspira novamente, tomada pela indiferença - Já era hora.

- Não. Com toda essa vida escrota. - responde tirando os olhos do vazio e pousando-os sobre ela. Ela ergue a sobrancelha direita, abre um sorriso irônico no canto da boca e encara-o de modo arrogante.

- É mesmo? - indaga desdenhosa.

- Sim.

- Ao menos poupa-me o dinheiro do advogado. E como vai ser?

- Vou me jogar daqui.

São vinte e cinco andares até o asfalto da avenida.

- Que original.

Silêncio. Ela continua:

- Não vai começar a escrever sua despedida?

- Não vai haver despedida escrita. Só vou fazer de uma vez.

- Então trate de andar logo.

Silêncio.

- Entendi. Você não tem coragem. É um covarde.

- Sou. Por isso vou fazê-lo.

-E o que está esperando?

- Nada - e põe-se de pé.

Ele respira fundo, contempla seus últimos momentos. Ela continua sentada ali, fitando-o com escárnio, rindo-se de toda a cena por dentro. A ela tanto faz te-lo ali ou não.

Começa a andar tranquilamente. Toma impulso, não muito forte, apenas o suficiente para romper o vidro. Vai de encontro à janela e quebra-a em inúmeros cacos, que o acompanham na queda. Fecha os olhos. Sente-se livre e sereno no caminho desenfreado rumo ao chão. Por quatro eternos segundos ele voa. Oitenta metros de paz.

E encontra o chão. Bate.

Morre despedaçado na sarjeta.

O derradeiro alívio.

Ela leva a mão à boca.

Boceja.

E toma mais um gole do chá.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Voraz


Deita-se todas as noites em novo leito, sem se cansar de sacrificar seu corpo repetidamente a volúpia. Uma musa insaciável. Sorve de seus machos todo o vigor, deixa-os ofegantes, e ainda insatisfeita implora por mais. Mas eles não passam de escravos submissos. Paixões intensas de noites vazias.

A depressão sempre vem ao amanhecer. A história é a mesma. Larga o amante ao resplandecer da primeira luz da alvorada, sentindo o mais puro nojo dele e de todo o ambiente em que acorda, qualquer que seja. E de si, só a mais pura pena. Entrega-se ao choro no caminho de volta ao que lhe serve de abrigo durante o dia. Não chega a ser um lar. Já não tem ideia do que é ter um lar. Soluça, entre gritos e lamentações, pela solidão que a consome. E por fim adormece, após tanto se debater contra as paredes velhas e quebradiças de seu quarto, socando-as com as poucas forças que lhe restam, como se enfrentasse seus medos, achando que de algum modo pudesse descarregar nelas sua raiva e se curar de tudo o que sente.

Descansa o corpo saturado. E novamente acorda em desespero ao sentir o vazio da solidão lancinante e aterradora. Voa apressada até a rua, sentindo a sede violenta por sexo e companhia noite adentro. Qualquer um a leva para casa após um prato de comida, uns drinks e alguns cigarros. Já mal consegue ser uma puta. O pagamento se reduz a nada além do necessário para a subsistência. E jamais consegue preencher as lacunas frias e infinitas que a habitam. Sua vida orgásmica é previsível. Seu ignóbil desejo é sentir-se amada. Fracassa outra vez. O desenlace se repete.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

Mais um corpo vai ao chão




Possui o revólver antigo na mão direita, quase largado, frágil, entregue ao ar parado da sala. A mão esquerda segura a cabeça, forçando o cotovelo contra a mesa. Tufos do cabelo já levemente grisalho entremeiam os dedos franzinos e trêmulos. O coração bate vagarosamente. A calma sobressai apesar de todo o desespero, enquanto um cigarro pende da boca, recém-aceso, soltando sua fumaça que rapidamente trata de se dissipar naquele ambiente mórbido. As feições transmitem um ar fortemente amargo, reproduzindo a mais sincera decepção. Aproveita languidamente o desgosto de seus últimos momentos, saboreando cada vagaroso segundo. É como se não pertencesse mais ao mundo que o rodeia, como um turista que visita rapidamente um lugar e em breve não estará mais ali.

Pela primeira vez em anos sentiu-se realmente livre. Ali, sem quaisquer obrigações, sem dever nada a ninguém, desfrutando da sensação de silêncio que tanto desejou ao longo de toda a vida, porém jamais obteve. Sim, livre. Sem ninguém lhe aporrinhando o saco. Finalmente todas as vozes que lhe tomavam a cabeça se haviam silenciado, o que, por coincidência ou não, só acontecera depois da decisão tomada. Era certo, estaria morto pelas próprias mãos em poucos instantes. Não havia quem pudesse impedir, tampouco convence-lo do contrário. Nesse ínterim, por que não um último cigarro? Retomava o velho e familiar hábito de tantos anos atrás. O tabaco ia-se consumido em tragadas profundas e bem espaçadas. Tomaria algum tempo antes de ser terminado. Revezava seu tempo entre lábios e dedos, por vezes esquecido, entre uns e outros dos últimos devaneios de seu dono, cujo olhar já se perdia entre o sofá empoeirado e a estante abarrotada de livros velhos e sujos. Como se ali entre tantas grandes idéias e palavras restasse alguma última esperança, ou simplesmente algo que lhe despertasse um interesse há tanto perdido no que quer que fosse.

Estremeceu. Deu-se conta que não era sequer capaz de acreditar em si mesmo, o que lhe provocou certa inquietação. Sabia que era um ínfimo pedaço de um nada ainda maior que ele mesmo. Postrou-se diante da mesa lascada, em tom pensativo. Mas não havia mais o que pensar. Estava tudo acabado. Deixou a pose de lado e se recompôs, estudando as possibilidades. Mas que possibilidades?, pensou. Não havia nenhuma. Mais nada.

Passou os dedos pelas bordas do bilhete que deixaria a quem quer que o encontrasse jazendo morto no chão da sala, deitado sobre uma poça de sangue. Quem sabe até algum familiar poderia chegar a lê-lo, se tivesse sorte. Escrevera poucas palavras. Um típico último adeus de um suicida que soa tão misterioso aos vivos. A ele parecia simples. Apenas se pôs a rabiscar algumas últimas palavras e assinou. Não havia grande motivo para pensar muito a respeito. Depositou aquele maldito papel sobre a mesa e deu sua última tragada, sentindo a fumaça entrar profundamente em seus pulmões.

O cigarro acabou, por fim. Não se preocupou sem se livrar das cinzas. Não faria a menor diferença. Jogou-o para o lado, a qualquer canto da sala, e limitou-se a suspirar. Finalmente estava pronto. Empunhou o revólver mais firmemente, apertando os dedos e a palma da mão contra o cabo. Engatilhou-o e posicionou seu indicador, com a ponta do cano da arma já colado ao céu da boca, para que não corresse o risco de sobreviver. O projétil se alojaria diretamente no cérebro, sem alternativa além do falecimento súbito e indubitável.

Apertou o gatilho, finalmente.

Clic. Bum. E mais um corpo vai ao chão.

Só lamentava não poder ver a reação da esposa e filhos quando entrassem pela porta.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

Reificação




Contempla o cair da noite, recluso a seu cubículo, ao qual ousa dar o nome de lar. Observa o lado de fora, incapaz de se dar conta de si mesmo. Perscruta atentamente o que o rodeia, reparando cada fútil detalhe, na melancólica e por vezes bizarra esperança de encontrar uma rota de fuga. Já quase esquecendo da própria existência, chegando ao ponto de desistir de si. Talvez porque não tenha mais vontade alguma de prestar atenção no seu ego já miserável e consumido pela rotina. Já se tornou um autômato, acostumado ao mesmo movimento cíclico que sempre executa. Um homem-engrenagem. Movido por outros exatamente iguais. E por eles influenciado. Manipulado. Exausto e sem coragem demais para tentar libertar-se.

Reduz-se a si, um homem acovardado e simplório, um miserável aprisionado aos escarcéus mundanos, esgueirando-se diariamente por entre os prédios cinzentos que lhe servem de prisão, que o entregam à fria realidade de um mundo repulsivo. Esconde-se em recônditos criados por ele mesmo, numa tentativa fracassada de se aliviar da realidade perturbadora que se encarrega de consumi-lo, moldando em sofrimento sua face já marcada pela monotonia. E o faz trazer à lembrança dos que observam suas feições gastas a impressão de horror, deixando claro o vazio terrífico que passou a deter ao longo de tantos anos imundos vagando pelo nada sem possuir sequer algum esboço de rumo.

E quando finalmente olha para si, e percebe que ainda existe, não se reconhece no que vê. Porque dele só resta um espectro retaliado e insignificante, perdido no mundo urbano e inexpressivo que nada mais significa. E assim permanece, condenado a esse pequeno universo de reificação absoluta. À mercê dos dias. Do tempo.

sábado, 10 de janeiro de 2009

Solidão



A luz inebriante de mais uma pálida manhã penetrava a janela e dava as faces de outro um dia nublado. Despertou-me aos poucos, em tom sorrateiro.

O ambiente soturno do quarto em que dormira até então se aproveitava do fino feixe de luz para sustentar sua aparência melancólica. Como num gesto simbólico e irônico para me fazer acreditar que, como aquele fio frágil de luminosidade que trespassava o quarto melancólico, eu ainda deveria ter alguma esperança de que algo bom pudesse me acontecer. Deixei-me ser incomodado por algum tempo. Sabia que não havia como impedir o quarto de ser iluminado aos poucos. Continuei deitado, sentindo os lençóis ásperos, sujos de grãos de areia ao meu redor, entrelaçando-se ao meu corpo desordenadamente, deixando a sensação de desconforto me consumir até que eu resolvesse levantar. O cheiro forte de poeira me agredia, fazendo meu tormento mais desagradável ainda. Eu acordara e permanecia em estado semi-consciente, maldizendo em sussurros todo aquele lugar por não me permitir mais alguns minutos de sono sequer. Ao menos o silêncio parecia ser preservado. Não ouvia-se barulho nenhum além do meu respirar e rolar tenso na cama.

Finalmente resolvi sentar-me entre alguns dos numerosos calombos que a habitavam. Minhas pálpebras ainda pesavam, dificultando minha visão e desencorajando-me de seguir adiante.

Foi difícil levantar. O gosto amargo de uma noite longa me incomodava. Tossi algumas vezes. Meus pulmões doíam, meus pés mal suportavam o peso do meu corpo e já me davam a sensação de cansaço. Minhas pernas imploravam que eu não as erguesse além daquele ponto, fadigadas e descaídas sem que eu ao menos lembrasse por quê. Meu corpo estava esgotado. Física e psicologicamente. Não havia o que eu queresse além de sair de lá num salto, deixar aquele lugar que me aturdia tanto. Fui aos poucos me içando da cama, vagarosamente, sentindo as dores que acompanhavam cada parte do meu corpo aumentarem pouco a pouco. Cada vez mais cálidas, cada vez mais intensas.

Fiquei de pé. Meu esforço finalmente me erguera. Cheguei a sentir certo orgulho por ter tido sucesso quanto àquilo. Agora meus passos deveriam guiar-me para fora de lá. Meus pés continuavam a protestar, querendo não continuar no desenrolar daquela árdua tarefa. Com razão. Mas eu precisava sair, ir a algum lugar que não fosse tão desagradável. Passei pela porta do quarto, empenada, já prestes a cair, e me deparei com um corredor. Percorri cambaleante alguns metros dentro do que parecia ser uma casa desfeita aos pedaços. Finalmente saí, já ofegante, sentindo o suor que me descia pelo corpo e trazia o desconforto que a umidade me fazia sentir.

Parei à soleira da porta. Observei o que havia ao redor, sem ter idéia de onde estava, ou por que estava ali. Deparei-me com uma rua destruída. As casas que a ocupavam estavam em ruínas, algumas haviam se reduzido a paredes que já não sustentavam nada, enegrecidas e parcialmente tombadas por algo que aparentava ter sido um incêndio acompanhado de um terremoto ou algo tão destrutivo quanto. Andei por algumas horas, já ignorando a dor que tanto me incomodava. Tudo parecia simplesmente abandonado. Entregue ao caos.

Vaguei por dias ao longo de ruas e frígidas insalubres, sem achar nada que me pudesse explicar o que havia acontecido. Tudo havia se tornado simplesmente deserto. Não havia uma única alma ainda viva, tampouco morta, que habitasse sequer algum daqueles tantos quilômetros percorridos.

Mais ninguém. Mais nada. Só eu. Literalmente só no mundo. Preso e solitário no abismo repugnante da degradação humana.



(M.L.)

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Sonho


Eu andava num gramado macio. Era mais verde e vivo do que os comuns. Talvez fosse porque você estava lá para fazer tudo melhor, mais belo. O dia era suavemente ensolarado e uma brisa delicada soprava em nossos rostos. Os passos silenciosos caminhavam em harmonia rumo ao nada, simplesmente atravessando o espaço e cortando o vento para alcançar qualquer lugar. Eu já não sabia quem era. Eu. Assim, sem nome e sem lembranças, sem passado.

Meus olhos procuravam os seus, em busca de segurança e respostas. Mas os seus fugiam, recusando-se a ceder-me sua atenção. Eu achava não ser capaz de pensar por mim mesmo, tampouco de andar por mim mesmo. Temia que voce soltasse a minha mão e eu caísse. Eu não sabia de você. Eu te amava. Sem ao menos saber por que. Mas você não me soltou. Continuou a me segurar, a caminhar comigo de cabeça baixa, com o rosto escondido entre os cabelos escuros, que refletiam a luz já fraca do sol já poente. Eu não sabia o que fazer. Eu não sabia nada. Deixei-me levar por teus passos.

Tentei me aproximar mais. Você se afastou bruscamente. Soltou-me e foi para longe de mim. Mas não caí. Deixou-me ali, parado, te fitando de costas, sem me dar conta do caos que tomava meu interior e exterior. Eu simplesmente jazia ali inerte, sob o céu já enegrecido num tom acinzentado, sem vida. A escuridão começava a cercar tudo, prenunciava o desastre sem que eu percebesse. Você se virou para mim, ainda sem revelar o rosto. E foi se desmanchando, se transformando em cinzas que aquela brisa levava ao alto e desaparecia, transfigurada em pó. Corri tomado pelo desespero para te alcançar e fazer algo que nem sabia o que. Mas fazia-o em vão. Não havia mais você.






(M.L)

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Nada de novo no Front



Tocou o alarme do despertador. Levantou-se da cama lentamente e, desanimado, foi andando até a cozinha, ainda parcialmente atordoado pelo sono. O aroma exalado pelo café tomava o lugar por completo, invadindo suas narinas e despertando-lhe a diária preguiça que o cotidiano impunha. A empregada fora arrumar o quarto. Serviu-se do café, passou manteiga numas torradas e sentiu o mesmo gosto de sempre, já sem achar nele mais graça alguma. Os sagrados e monótonos rituais de toda manhã, que o tempo há tanto desgastara. Que a solidão há tanto desgastara.

Catou o jornal do dia. Abriu-o e pôs-se a lê-lo. Tiroteios. Alguns mortos, outros tantos feridos. Assassinatos em todas as páginas, corrupção, mais umas mortes e a tabela do campeonato. As mesmas notícias, os mesmos acontecimentos em todo lugar ao seu redor. Dobrou o jornal e deixou-o de lado. Maldito jornal.

Agora está só na cozinha, com uma xícara de café esfriando à sua frente e algumas torradas mordiscadas. O café da manhã pela metade. Ele fita o nada. O olhar perdido. E assim fica, vazio, quando lembra que é hora de enfrentar mais uma vez o caos urbano que o cerca, sair rumo a mais um dia monótono, sabendo que o próximo será igual. Abandonado por si mesmo no próprio cotidiano.

Assim será. Sempre.

E ponto final.




(M.L.)