sábado, 23 de maio de 2009

Ampulheta











Um cadáver se decompõe no canto do aposento, nu, já com larvas em todos os orifícios. Os olhos e a boca jazem abertos, rodeados pelas carnes escuras e putrefatas. Ele fita o teto com o olhar morto.

Do outro lado do cômodo, a menina brinca com a ampulheta, vira-a de um lado para o outro, vendo a areia passar pelo estreito. Coloca-a deitada, fazendo cessar o movimento, e observa aquele homem ali, a alguns metros de distância, tão quieto e silencioso. Então resolve virar o lado mais cheio para cima. A areia fina começa a descer novamente, e ela põe os olhos no corpo mais uma vez. A carne começa a clarear, as larvas somem e o ar aos poucos volta aos pulmões ofegantes, até que ele vira a cabeça, olha a criança nos olhos e agradece com voz fraca. Depois, fecha os olhos e dorme. A respiração se torna cada vez mais profunda. As rugas se esmaecem, até desaparecerem e sobrar o rosto e o corpo de uma criança, e, por fim, o de um bebê.

Até que os últimos grãos começam a cair.

A menina inverte o fluxo de areia e observa a queda dos fragmentos com o olhar indiferente. depois, volta a fitar o que se tornou um bebê no chão. E ele começa a se transformar. Ainda dormindo, vira uma criança e um jovem. As rugas começam a reaparecer, cada vez mais marcantes na face do homem já idoso. Ele acorda, vira a cabeça e olha a criança nos olhos uma segunda vez, agora pedindo piedade, por favor. Os olhos sem brilho passam a fitar a ampulheta e a queda incessante dos grãos. Com a voz rouca e distante, ele implora, deixando escapar uma lágrima pelos olhos fundos e escuros, umedecendo a tez ressecada da sua face. E finalmente expira, uma última vez. Falece novamente. A areia continua caindo. O corpo escurece e a carne recomeça a apodrecer, até que se torna uma pilha de ossos abandonados. Depois, apenas pó. E é levado janela afora pelo vento frio que passa.

A menina observa tudo com um sorriso doce no rosto.

E vira a ampulheta mais uma vez.

7 comentários:

  1. fantástico, seu conto.

    lembrei-me apenas que antes de morrer, dizem, a vida passa diante de nossos olhos. Seria a menina virando a ampulheta?

    Blog Suicide Virgin

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  2. Um ciclo! Nossa... quanta imagem, quanta forma!
    E a menina, sorrindo... to pasmo, muito bom!
    gosto destes textos evolutivos, especialmente os que são como este, um desfecho quase que evasivo, ou totalmente evasivo, nem sei o que dizer...

    perfeito!

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  3. Gostei tanto... adorei mesmo. Parabéns!

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  4. Como o tempo gosta de nos ver sofrer...Foi a primeira coisa que eu pensei quando acabei de ler. Pensei bastante lendo esse conto. Não ficou apenas muito bom, ficou produtivo. São os seus textos que eu mais gosto, Mário!

    Abraços,
    L&S

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  5. Essa menina parece ser sádica. rs Mas quem se pudéssemos voltar a viver com uma virada de ampulheta. Mas como seria agoniante também ter a vida em outras mãos...

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